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‘Fura-fila’ da vacinação: conduta imoral ou criminosa?

Por: JOTA


Há, no mínimo, 17 projetos de lei para criminalização do “fura-fila” da vacinação


Créditos: Tania Rêgo/Agência Brasil


Na última semana, foram veiculadas diversas reportagens revelando constrangedora situação em que políticos e empresários de Minas Gerais teriam adquirido e aplicado o imunizante da Pfizer contra a Covid-19 em benefício próprio e de seus familiares, violando a ordem de prioridade disposta na legislação vigente.


O Programa Nacional de Imunização (PNI) do Ministério da Saúde, criado em 18 de setembro de 1973, é uma ação coordenada do Governo Federal que visa conduzir estratégias de prevenção e controle da incidência de doenças infectocontagiosas, por meio da vacinação em massa da população, sendo reconhecido com destaque internacional pela Organização Mundial de Saúde (OMS)[1].


Uma das grandes virtudes do Programa Nacional de Imunização (PNI) está justamente em sua efetiva contribuição para reduzir as desigualdades regionais, sociais e econômicas, por intermédio do pleno acesso aos programas de vacinação, sendo verdadeiro promotor de igualdade pela via da saúde.


Dentro desse contexto macro, o Ministério da Saúde elaborou o Plano Nacional de Operacionalização da Vacina contra a Covid-19, estabelecendo uma ordem de vacinação para os grupos prioritários. A seleção das populações com prioridade na imunização foi baseada em princípios da Organização Mundial da Saúde (OMS) e realizada em consonância com entidades nacionais de saúde: Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) e o Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems).


Em razão da conhecida dificuldade governamental para a aquisição das vacinas e o óbvio interesse humano e econômico da iniciativa privada em contribuir com a vacinação nacional, após ampla discussão no Congresso Nacional, no dia 10 de março de 2021, foi publicada a Lei Federal n. 14.125/21, que dispõe sobre a aquisição e distribuição de vacinas por pessoas jurídicas de direito privado.


Em suma, restou definido que as pessoas jurídicas de direito privado poderão adquirir diretamente vacinas contra a Covid-19, que tenham efetiva autorização da Anvisa, desde que sejam integralmente doadas ao Sistema Único de Saúde (SUS), a fim de serem utilizadas no âmbito do Programa Nacional de Imunizações (PNI).


Por sua vez, após o término da imunização dos grupos prioritários previstos no Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação contra a Covid-19, as pessoas jurídicas de direito privado poderão, atendidos os requisitos legais e sanitários, adquirir, distribuir e administrar vacinas, desde que pelo menos 50% das doses sejam, obrigatoriamente, doadas ao SUS e as demais sejam utilizadas de forma gratuita, devendo reportar todos esses dados ao Ministério da Saúde.


Diante da mencionada estrutura legislativa relacionada à questão sanitária, cumpre avaliar se a conduta dos empresários seria apenas uma questão reprovável, que viola a moral e solidariedade que se espera dos membros da sociedade, ou se há, tecnicamente, reflexos na esfera criminal que devem ser apurados pelas Autoridades Públicas.


Com relação ao fato específico, ao que se tem notícia, os Deputados Federais do Partido Socialista Brasileiro (PSB) apresentaram notícia de crime ao Procurador-Geral de Justiça do Ministério Público do Estado de Minas Gerais, com a suposta imputação do crime previsto no artigo 268, do Código Penal.


Por óbvio, está-se diante de uma situação reprovável, egoísta, pautada pela falta de humanidade e desprezo pela vida humana. Entretanto, o que se pretende é avaliar a questão sob o enfoque técnico-jurídico penal.


Em primeiro lugar, importante considerar que a infração de medida sanitária preventiva – prevista no artigo 268, do Código Penal – tem como bem jurídico tutelado a incolumidade pública, particularmente em relação à saúde pública, estando estritamente vinculada ao dever assumido pelo Estado de atuar, mediante políticas públicas e ações concretas, para a redução do risco de doenças (artigo 196, da Constituição Federal).


Desta forma, embora a criminalização da violação de medida sanitária preventiva seja um instrumento de proteção da saúde, é preciso ter em mente que o Direito Penal tem natureza subsidiária e fragmentária, de modo que a interpretação do tipo penal deve ser restritiva e somente deve abranger as infrações significativas de determinações do Poder Público e que coloquem em perigo a saúde de um número indeterminado de pessoas.

Em outras palavras, é necessário restar demonstrada a idoneidade do comportamento infrator para alcançar um potencial resultado ofensivo à preservação do bem jurídico tutelado, visto sob perspectiva genérica.

Em analogia singela de violação às medidas sanitárias preventivas, embora também seja uma conduta reprovável, seria viável processar criminalmente todas as pessoas que deixam de usar máscaras de proteção, em desacordo com a legislação vigente?


Mais que isso, por ser uma norma penal em branco, a ser complementada por meio de determinações do Poder Público, essencial que a conduta viole exatamente os termos da regulamentação administrativa, na medida em que não se pode recorrer à interpretação analógica para subsunção da conduta à norma.


Não obstante a Lei Federal n 14.125/21 descreva a formatação adequada para a aquisição, distribuição e administração das vacinas para pessoas jurídicas de direito privado, além de criar obrigações de reporte dos dados ao Ministério da Saúde, a legislação administrativa nada menciona sobre as pessoas físicas, o que, sob a ótica da estrita tipicidade, pode ser uma fragilidade para a subsunção ao artigo 268, do Código Penal.


Além disso, importante ressaltar que há, no mínimo, 17 projetos de lei para criminalização do “fura-fila” da vacinação, o que denota que os próprios legisladores possuem dúvidas sobre a aplicabilidade do dispositivo genérico existente no Código Penal para coibir a referida prática, embora também se possa justificar que a intenção dos parlamentares seria, na verdade, aumentar o preceito secundário – pena cominada – da norma.


Atualmente, o PL n. 25/2021 uniu todos os outros Projetos de Lei sobre a matéria, tendo sido aprovado pela Câmara dos Deputados e, atualmente, aguarda apreciação no Senado Federal. Por óbvio, mesmo que aprovado, não seria aplicável às condutas passadas, sob pena de violação ao princípio da anterioridade da lei penal.


O crime previsto no aludido projeto de lei pune aquele que “infringir ordem de prioridade de vacinação ou afrontar, por qualquer meio, a operacionalização de planos federais, estaduais ou municipais de imunização”.


Por outro ângulo, além da conduta consubstanciada na infração, em si, da ordem de prioridade da imunização, que, a depender de fatores fenomênicos de cada caso, pode não caracterizar o tipo penal previsto no artigo 268, do Código Penal, é preciso averiguar eventual prática delitiva quanto à origem e obtenção das vacinas.


Ao que se tem conhecimento, as vacinas mencionadas nas reportagens veiculadas seriam da Pfizer, sem qualquer fabricação em território nacional. Desta forma, tendo em vista que a companhia farmacêutica nega ter realizado qualquer venda ou distribuição de sua vacina fora do âmbito do Programa Nacional de Imunização (PNI), caso elas sejam verdadeiras, restam duas possibilidades sobre a origem dos imunizantes: (i) os empresários internalizaram as vacinas em desacordo com a legislação especial de importação, o que pode configurar um crime aduaneiro – descaminho – e deve levar a apuração da questão para a competência federal; (ii) as vacinas foram obtidas mediante crimes praticados por funcionário público que tinha acesso aos imunizantes e foi, posteriormente, desviado em proveito próprio e alheio, o que poderia configurar crimes contra a administração pública – peculato ou corrupção.


Da mesma forma, importante considerar que o mesmo PL n. 25/21 cria novos tipos penais específicos relacionados ao peculato de vacinas e a corrupção em planos de imunização, o que, mais uma vez, pode denotar dúvida do legislador quanto à aplicação dos crimes vigentes no Código Penal para a conduta em discussão, ou, novamente uma intenção de exasperar a pena aplicada ao crime genérico.


Por fim, não resta qualquer dúvida quanto à imoralidade, desprezo à vida humana, ausência de solidariedade, insensibilidade, postura egocentrada daqueles que colocam seu próprio interesse à frente de grupos vulneráveis, o que deve ser coibido de forma sistemática pelo Poder Público. Entretanto, como profissionais do Direito Penal, devemos colocar a opinião pública e a emoção de lado e avaliar a questão sob a perspectiva técnica, de modo a aprofundar o panorama factual de cada caso e verificar a real pertinência de subsunção criminal, dentro da legislação penal vigente e não daquela prognóstica.

 
 

Texto publicado originalmente em JOTA.

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